SEÑOR DE CHOQUEKILLKA: A FÉ QUE MOVE AS MONTANHAS DE OLLANTAYTAMBO
Uma cidade milenar, raízes culturais profundas e uma manifestação popular única no Peru. Conheça o Festival Señor de Choquekillka, onde as tradições católicas se fundem com a infinidade de crenças do Vale Sagrado dos Incas.
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OLLANTAYTAMBO, UM DESTINO INEVITÁVEL
Ollantaytambo é uma pequena cidade peruana na região do Vale Sagrado. Está incrustada aos pés das montanhas, às margens do rio Urubamba.
Muita gente passa por ali, pois é de onde saem os grupos que fazem a caminhada de 4 dias pela Trilha Inca até Machu Picchu. Também é onde fica a outra estação de onde partem os trens com destino a Aguas Calientes, o portal de entrada para visitar Machu Picchu, a fortaleza de pedra em meio às nuvens. A outra estação fica em Poroy, nos arredores de Cusco.
As principais atrações da cidade são suas ruínas e terraços incas. É possível conhecê-los em um dia, por isso não é de se admirar que a maioria dos visitantes passe apenas uma noite na cidade. Mas isso é um engano. Para realmente conhecer as “entranhas” da cidade, recomendamos uma estadia de pelo menos duas noites.
Um motivo incontestável para ficar ainda mais tempo na cidade é o Festival Señor de Choquekillka.
Embora não seja tão conhecido como o Inti Raymi ou a procissão da Virgem de Paucartambo, se você programar sua viagem para que coincida com a data de sua realização, conhecerá de perto um dos mais importantes festivais religiosos do Vale Sagrado. Ao contrário do festival de Inti Raymi, realizado em Cusco, é possível ter uma experiência mais autêntica e mais íntima no festival de Ollantaytambo, pois há menos aglomeração e turistas, e o acesso às festividades é muito mais fácil.
Não deixe de ver as ruínas, os terraços, as fontes, as construções e os canais incas que caracterizam a cidade, mas não perca este incrível festival religioso para realmente conhecer uma das mais autênticas manifestações de fé e da cultura popular peruana.
Afinal de contas, ir ao Peru e não conhecer Ollantaytambo seria um pecado imperdoável!
SEÑOR DE CHOQUEKILLKA - ORIGEM
Em um domingo ensolarado do qual não se sabe ao certo a data, depois de responder ao chamado dos sinos da igreja, pedir benção e agradecer por uma boa colheita, Román Ontón encontrou-se com seu compadre. Foram comemorar sua boa fortuna brindando alegremente com canecas de chicha, entremeadas com aguardente e uma boa prosa.
Despedindo-se de seu amigo, montou em seu cavalo para voltar para casa. Mal sabia Román Ontón o que o esperava pelo caminho.
Às margens do rio Vilcanota há uma Huaca (lugar sagrado) conhecida pelo nome de Choquekillka (choque = ouro, killka = recinto) onde, segundo moradores locais, é possível ouvir tarde da noite lamentos de fantasmas. Já ao fim do dia, ao passar por lá, seu cavalo empinou assustado e o derrubou.
Precariamente sustentado por um ramo no barranco, viu deslumbrado o que havia causado sua queda.
Uma cruz de madeira que emitia uma luz intensa rodopiava no meio de um redemoinho no rio.
A chincha, a adrenalina da queda e a visão esplendorosa misturaram-se em uma convulsão de imagens até ele adormecer.
A manhã despertou acompanhada do som de conversas entre campesinos que passavam pelo local. Ao ouvirem os gritos de ajuda de Román Ontón, o resgataram das margens do rio e ouviram dele a mais extraordinária das histórias. Procuraram então pela cruz, a retiraram do rio e a fincaram sobre algumas pedras naquele mesmo local.
A notícia se espalhou e, em meio a orações, procissões e milagres, a rústica cruz de madeira passou a ser conhecida como Señor de Choquekillka, um Cristo milagroso que ajuda aos seus fiéis e, às vezes, os castiga.
UMA RESIDÊNCIA PERMANENTE
Depois de um período em que era levada em peregrinação de casa em casa, a cruz foi colocada em uma choça em forma de capela e, mais tarde, transferida para a igreja na praça central de Ollantaytambo, onde reside até hoje. Uma vez por ano é retirada de sua morada para ser acolhida por seus devotos nas ruas da cidade durante um dos mais importantes festivais religiosos do Vale Sagrado.
A cruz não traz a tradicional imagem de corpo inteiro de Cristo que está presente nas igrejas e ritos católicos. No seu topo, uma coroa de prata incrustada com pedras multicoloridas emoldura um retrato de seu rosto. É espetacularmente decorada com adornos de prata e tecidos de cores vivas, característicos da região. Cabeças douradas de leões enfeitam as extremidades do andor e uma grande variedade de flores reveste os pés da cruz.
A FESTA DE PENTECOSTES
Cristãos de todo o mundo comemoram a descida do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus no 50º dia após a Páscoa, durante as celebrações de Pentecostes. No Peru, a festa de Pentecostes mais animada e vibrante acontece em Ollantaytambo, no Vale de Urubamba, uma cidade que fica a cerca de 60 km de Cusco.
O Señor de Choquekillka é o patrono de Ollantaytambo e peça central de um festival religioso que atrai grandes multidões à cidade inca.
A comemoração religiosa foi declarada Patrimônio Cultural da Nação em 2008 como um evento que “reúne tradições de diversas origens e procedências e contribui para a criação de um corpus cultural de grande riqueza, veículo de identidade coletiva”.
É uma fusão de tradições e crenças católicas levadas ao Peru pelos conquistadores espanhóis, com costumes, ritos e símbolos andinos antigos. Combina as celebrações tradicionais de Pentecostes da igreja católica com a música, as danças, os rituais, a culinária e as tradições locais, criando um exemplo vivo de sincretismo religioso.
O Festival Señor de Choquekillka começa no sábado e se estende até a terça-feira, mas seu apogeu acontece no domingo, que é o sétimo domingo após o domingo de Páscoa.
Tradicionalmente, dezessete grupos de dança, ou comparsas, se apresentam durante o evento. Eles passam várias semanas antes do festival preparando seus trajes exuberantes e suas danças complexas. As vestimentas de cada grupo são distintamente autênticas. Alguns de seus integrantes ostentam faixas intrincadas de miçangas, outros ornamentos com imitações de cabeças de filhotes de alpaca, outros vestem máscaras exóticas com lábios superdimensionados e narizes à la Cyrano de Bergerac. Tudo isso se mistura em um cenário bizarro e interessante. Uma combinação extraordinária do inesperado com o surreal.
QUATRO DIAS DE IMERSÃO NA CULTURA LOCAL
Olhos vermelhos ameaçadores, galhadas de cervo protuberantes saindo das têmporas, cabelos longos e despenteados e duas presas enormes. Emitindo um som sibilante, a criatura me encarava do alto de um muro, como um ser imaginário que havia escapado de um livro de fantasia.
Era um dos muitos saqras, demônios multicoloridos, que espreitavam a passagem da procissão de fiéis que carregavam a cruz do Señor de Choquekillka. Neste momento fui transportado para uma realidade paralela, como um conto do realismo fantástico, um redemoinho onde o real e a fantasia se misturavam, criando um caleidoscópio de surpresas.
Ao fundo, a música rítmica da banda acompanhava o vai e vem do andar dos diversos grupos de dança que se revezavam para carregar o andor.
Acompanhávamos a procissão com o sentimento de que, pelo menos por alguns momentos, faríamos parte daquela manifestação espontânea. Deixávamos de ser meramente turistas para nos enternecer com as demonstrações de espírito comunitário.
Do alto da cruz, Jesus contemplava o festival de cores, orações e emoções que se desenrolava aos seus pés, sobre os quais os devotos colocavam oferendas para agradecer as bênçãos que haviam recebido ao longo do ano.
No andor, as prendas se misturavam como em uma pintura impressionista: uma galinha, um prato da culinária local, mais flores, um terço, um retrato de um ente querido.
De repente, a banda começou a tocar a música universalmente conhecida de feliz aniversário. O aniversariante, um senhor de idade, aguardava sentado em uma cadeira na rua a chegada do santo padroeiro à sua casa. As emoções eram cruas e estavam claramente estampadas no seu rosto e nos de sua mulher e filha. Com um bolo de aniversário como oferenda, agradeceram profusamente a honra de serem visitados pela divindade e por ele ter recebido a graça de mais um ano de vida.
Por coincidência, também era meu aniversário. Aproximei-me dele, apertei sua mão e lhe desejei muitas felicidades. Também lhe disse que, apesar de não conhecê-lo, eu estava muito feliz por poder estar presente em um momento tão importante em sua vida. Com certeza a magia do evento e daquele momento específico será uma lembrança que guardarei comigo para sempre.
O festival começa no sábado à tarde na praça central de Ollantaytambo. À noite a estátua do Señor de Choquekillka é retirada da igreja da praça central acompanhada por músicos, dançarinos, fiéis e observadores em uma alegre e colorida procissão até o Templo de Santiago. O dia é encerrado com celebrações e fogos de artifício.
Antes do raiar do sol de domingo, o principal dia da celebração, ouve-se o primeiro rojão, cujos ecos entre as montanhas ao redor de Ollantaytambo anunciam que a festa está prestes a recomeçar. O dia amanhece com mais música e dança, lindas vestimentas e excelente culinária local. Há uma corrida de touros no fim da tarde e outras atividades. As festividades continuam noite adentro ao redor da praça central.
Na segunda-feira, a imagem é levada em uma procissão onde diversos grupos de dança se revezam para carregar o andor. O cortejo para várias vezes em frente às casas dos moradores, que fazem oferendas ao santo, colocando prendas e outros objetos aos pés da imagem.
Na terça-feira o Festival Señor de Choquekillka termina com uma procissão final que leva a imagem de volta à igreja na praça central.
DICAS PARA CURTIR O FESTIVAL
QUANDO ACONTECE
A data de realização do festival varia ano a ano. Para saber exatamente quando o festival é realizado, conte 7 domingos após a Páscoa e não se esqueça de que é importante chegar antes do domingo para ter uma experiência completa.
Em 2022, o domingo de Páscoa cai em 17 de abril, portanto o Festival Señor de Choquekillka acontecerá em 5 de junho.
SINCRONIZE O DESPERTADOR COM O CANTO DO GALO
Se você não é de acordar cedo e gosta de ficar abraçado ao travesseiro de manhã, vai precisar mudar de rotina durante o Festival Señor de Choquekillka ou perderá momentos importantes do evento.
Deixe a preguiça de lado por alguns dias e você será recompensado por memórias inesquecíveis. Para registrá-las, sua máquina fotográfica (ou celular) deve ser sua companheira inseparável.
FOTOGRAFIA
Sugestões e dicas para fotografar o festival:
Há vários restaurantes com balcões no segundo andar ao redor da praça central. Aproveite enquanto toma uma cerveja gelada, um café ou almoça para fotografar os grupos de dança de cima.
Respeite o espaço das outras pessoas e sua religiosidade. Não se aventure em meio aos grupos de dança enquanto estiverem se apresentando. Você pode se aproximar para buscar ângulos melhores, mas mantenha uma distância segura para que possam se movimentar à vontade.
Durante a procissão, não se ponha no caminho de um modo que possa atrapalhar o avanço do cortejo. Há muitos participantes e as ruas são estreitas. Se você estiver no fim da procissão, terá dificuldades para chegar à sua frente. A melhor opção é se posicionar à frente dos devotos e se movimentar na mesma velocidade que eles. Novamente, mantenha distância e respeite os momentos de demonstração de fé pessoais.
Use calçados confortáveis que não escorreguem, pois as ruas são de paralelepípedos e, quase sempre, estão molhadas. Fique atento também às diferenças de nível das pedras para evitar tropeçar.
Caso esteja carregando uma mochila, coloque-a na frente do corpo para evitar a desagradável experiência de esbarrar sem querer em pessoas e objetos.
Não se acanhe e converse com os participantes e moradores locais. Os peruanos são muito acolhedores e amáveis. Pergunte sobre o festival e mate a curiosidade a respeito de seus trajes, danças e significados. Eles se orgulham de suas tradições e costumes e terão prazer em explicar. Isso não só demonstrará seu interesse pela cultura local, mas também ampliará seu conhecimento sobre o evento.
Além disso, essas conversas são ótimas oportunidades para perguntar se é possível fotografá-los. Durante nossa viagem ao Peru, nunca nos disseram não. No entanto, saiba que é comum em locais turísticos mais visitados as pessoas pedirem uma “propina” (gorjeta) para que você possa fotografá-las. Nunca deixe de respeitar o direito das pessoas que não querem ser fotografadas.
Damos preferência a lentes com distância focal fixa, mas para ter mais flexibilidade é recomendável usar uma lente zoom ao fotografar as danças e a procissão. Os dançarinos estão em constante movimento e, muitas vezes, é impossível mudar de posição para conseguir um melhor ângulo. O mesmo acontece durante o cortejo. Nosso equipamento é mirrorless e como íamos viajar para vários lugares no Peru, optamos por levar apenas duas lentes, equivalentes a 24-70mm e 70-200mm em uma DSLR full-frame.
COMO CHEGAR A OLLANTAYTAMBO
MODO MAIS ECONÔMICO
Vá até o terminal de ônibus para Urubamba e Ollantaytambo que fica próximo à esquina da Calle Pavitos e Av. Grau. O terminal fica a 900 metros a pé da Plaza de Armas de Cusco. Caso não queira caminhar, basta pegar um táxi. Esses transportes coletivos partem quando atingem a lotação e fazem o trajeto regularmente desde o início da manhã. O tempo de viagem é de aproximadamente 2 horas e a passagem custa cerca de 10 soles por pessoa.
TÁXI
Se quiser ir de táxi particular de Cusco para Ollantaytambo, prepare-se para pagar cerca de 100 soles. Não se esqueça de que, no Peru, há sempre uma margem para negociação. Aconselhamos que não aceite de imediato o preço cotado, mas não se esqueça de que esses prestadores de serviço também precisam ganhar o pão de cada dia, portanto, seja razoável.
No nosso caso, por pouco mais de 25 soles por pessoa (estávamos em quatro), contratamos um táxi diretamente do hotel em que nos hospedamos em Cusco para fazer um roteiro pelo Vale Sagrado com destino final em Ollantaytambo. Acreditamos que é uma alternativa mais interessante, pois o motorista pode parar a qualquer momento para você tirar fotografias e admirar a paisagem.
Para ir para Ollantaytambo com mais conforto para depois pegar o trem para Machu Picchu, contrate um serviço de transporte privado.
Se preferir, você também pode fazer apenas um passeio bate e volta a partir de Cusco.
ONDE FICAR EM OLLANTAYTAMBO
RESERVE O HOTEL COM BASTANTE ANTECEDÊNCIA
A cidade de Ollantaytambo é sempre muito movimentada por ser rota de acesso a Machu Picchu, portanto planeje bem sua viagem e faça suas reservas com bastante antecedência, especialmente se quiser estar em Ollanta durante o Festival Señor de Choquekillka. Fizemos nossas reservas 6 meses antes por meio do site Booking.com.
Nós nos hospedamos no Hotel Samanapaq que fica na rua principal a 300 metros da praça central. É um hotel simples, mas tem um jardim bastante charmoso, camas confortáveis e café da manhã básico incluído. O serviço de atendimento foi excelente. Como bônus, a procissão do Señor de Choquekillka passou em frente ao hotel na terça-feira, antes de irmos para a estação de trem rumo a Machu Picchu. Foi a despedida perfeita.
Veja a lista completa de sugestões aqui.
Como toda tradição oral, existem várias versões sobre a origem da cruz divina conhecida como Señor de Choquekillka, elemento central de um dos mais fantásticos festivais religiosos populares do Peru. Nossa narrativa é uma fusão de algumas delas.
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